A proximidade das eleições presidenciais reavivou os debates e as análises sobre as possíveis influências eleitorais do programa Bolsa Família, que hoje beneficia 13,6 milhões de famílias no País, e o seu futuro. Na avaliação do cientista político Vitor Marchetti, porém, o foco desse debate está errado. Para ele, o fenômeno político mais importante a ser analisado e compreendido é o gigantesco aumento das parcerias que o governo federal tem feito diretamente com os municípios.
Elas começaram no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, prosseguiram com Dilma Rousseff e estão sendo intensificadas com vistas a 2014. A presidente tem ido a pequenos municípios de diferentes regiões do País até para distribuir tratores e caminhões-pipa. Segundo Marchetti quase todas as creches que estão sendo construídas hoje nas pequenas cidades contam com verbas de algum programa federal, das pastas da Saúde, Educação, Desenvolvimento Social e outras.
Para o cientista político, seria essa interiorização do governo federal a principal responsável pelo fortalecimento do PT em municípios de pequeno e médio porte, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. O Bolsa Família não teria folego para explicar sozinho a mudança. Ele faria parte de uma política muito mais ampla, segundo o analista, que é professor da Universidade Federal do ABC, na região metropolitana de São Paulo, e também coordena o curso de políticas públicas daquela escola.
Confira a entrevista abaixo:
Confira a entrevista abaixo:
Uma das críticas mais comuns ao Bolsa Família é a de que funcionaria como uma espécie de curral eleitoral para o PT. Os pobres votariam no partido com medo de que o programa acabe se houver troca no comando político do País. Acha possível estabelecer essa correlação?
Os elementos empíricos para uma análise desse tipo ainda são poucos. Do que tenho visto, porém, acho raso e pouco complexo apontar o programa como o equivalente a uma compra de voto, um tipo de coronelismo adequado à nossa época. Essa ideia parte do princípio de que o cidadão se sentiria em dívida com quem lhe deu os recursos. Acontece, no entanto, que a imagem do Bolsa Família, apesar de estar ainda fortemente atrelada ao PT, se aproxima cada vez mais da imagem de uma política do governo federal, sem ligação direta com o partido que está no poder, seja ele qual for.
Nas eleições presidenciais de 2012, os partidos foram cautelosos. Nenhum o deu a entender que extinguiria o programa.
Sim. Está ficando claro para o cidadão que se trata de uma política de governo que vai continuar, não importando qual partido vença a eleição. É pouco verdadeiro atribuir ao Bolsa Família o avanço que o PT teve em regiões mais pobres, em municípios pequenos e médios do interior do País.
A que atribuiria então esse avanço petista na direção dos chamados grotões eleitorais?
O que tem impacto eleitoral é um conjunto de políticas públicas que começaram a ser adotadas no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que são focadas em regiões onde a presença do Estado sempre foi muito fraca, como o Norte e o Nordeste do País. Falam do Bolsa Família mas esquecem do Luz Para Todos, que leva energia elétrica para o sertão nordestino, para as regiões mais esquecidas da região Norte. Esse programa é um exemplo do movimento que intensificou a presença do governo federal nas regiões mais carentes. O fenômeno político importante a ser analisado no momento é esse: o gigantesco aumento das parcerias do governo federal feitas diretamente com os municípios. Isso aconteceu porque os municípios tinham assumido várias prerrogativas que não tinham condições de cumprir.
Foram prerrogativas definidas na Constituição de 1988.
Exatamente. Numa ação política muito peculiar, a Constituição de 1988 elevou os municípios à condição de entes federados, ao lado da União e dos Estados. Os municípios assumiram a responsabilidade, entre outras coisas, pela construção de creches e os serviços básicos de saúde. Mas eles não têm condições para isso. O que o Lula fez, então? Intensificou as alianças do governo federal com os municípios. O repasse direto de recursos federais para eles, nas áreas da saúde e educação, aumentou muito. Quase todos os municípios estão construindo creches atualmente, mas quem verificar com atenção a origem dos recursos irá constatar, quase invariavelmente, que provêm de algum programa específico do governo federal para o setor. Eles revelam o quanto o governo federal pegou atalhos para se tornar mais presente na vida do cidadão, no seu cotidiano. Isso aconteceu principalmente em municípios do Norte e Nordeste.
A presidente Dilma deu continuidade a essa política.
Ela foi além disso. Está intensificando essa política em seus preparativos para o ano que vem. Veja o caso da distribuição de tratores para os municípios mais pobres e com maior vocação agrícola. Trata-se de um programa federal e é comum a presidente ir entregar, pessoalmente, o trator.
O que chama a sua atenção é o fato de se tratar de um programa federal?
Estou apontando algumas questões que mudaram nas relações entre os entes federados. São elas que ajudam a explicar melhor a força que o PT passou a ter em regiões onde não conseguia nenhuma penetração. O partido sempre teve mais força nas capitais e grandes cidades do País, mas agora tem crescido principalmente em municípios de pequeno e médio porte.
Está dizendo que o Bolsa Família não explicaria sozinho a mudança no cenário eleitoral?
O programa teve uma indiscutível repercussão no padrão de consumo das famílias, mas se trata de uma variável fraca para explicar sozinha o sucesso do PT no rumo da interiorização, a sua influência nas prefeituras de pequenos e médios municípios. O Bolsa Família não tem fôlego para sustentar isso. Ele está amarrado a um conjunto mais amplo de políticas públicas para intensificar a presença do governo federal nos municípios. Sobre essa proximidade do Bolsa Família com uma política federal mais ampla, é bom lembrar que o programa acabou produzindo, como efeito colateral de sua montagem e organização, uma base de dados sobre os cidadãos mais carentes que o Brasil nunca teve antes.
O Cadastro Único, administrado pelo Ministério do Desenvolvimento Social.
Sim. É um cadastro inédito do ponto de vista de informações sobre a realidade econômica, educacional, sanitária e social dos cidadãos mais pobres. A política de interiorização da presença do Estado exigiu essa sofisticação na identificação desses cidadãos. O cadastro tem sido usado para definir políticas públicas que vão da área da educação a atividades na agricultura familiar. Curiosamente, porém, uma das críticas que o PSDB faz às ações do governo federal é a falta de foco, como se ele não conhecesse a realidade na qual atua.
E ele conhece?
O debate sobre o perfil dessas políticas e se são mais ou menos focadas tem sido muito acadêmico e com pouca relevância no cenário eleitoral. O fato é que o PT, a partir deste cadastro, que se torna cada vez mais refinado, sabe quem são os demandantes de políticas públicas, quem precisa ser atingido. O partido conseguiu construir políticas com todos os perfis. Identificar quem é o cliente, a partir de uma base de dados consistente e nada descartável, é fundamental para a definição de políticas públicas - sejam elas focadas ou generalistas.
Em quais setores o governo federal estaria investindo mais agora, para reforçar a busca da interiorização?
Educação e saúde são duas áreas em que está atuando muito. Hoje, qualquer reforma de escola municipal, qualquer programa local de capacitação de professores, de compra de computadores para estudantes está atrelado a algum programa federal, ao Ministério da Educação. São políticas que já nascem com o foco nos municípios e que têm efeito político. Nas eleições de 2012, era difícil encontrar prefeitos do interior que criticassem o governo federal e o PT. Eles sabem que o eleitor vota de acordo com o seu nível de satisfação: se está satisfeito vota na situação, se está contrariado, na oposição. Se ele percebe que o Bolsa Família lhe traz renda, melhora suas condições de vida, isso vai influir na decisão. É importante notar, porém, que os patamares de satisfação não duram para sempre. Depois de atingir um certo patamar, o cidadão começa a querer atingir outro e passa cobrar e exigir do governo.
Mapas eleitorais mostram que programas surtem mais efeito nas regiões mais pobres.
Nos Estados com maior força econômica e financeira, a presença do governo federal não é tão intensa. Por isso, registram maior polarização política.
ROLDÃO ARRUDA - O Estado de S.Paulo
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